O painel “IA e o futuro do jornalismo”, promovido pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) durante a entrega do Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa de 2025, na semana passada, aprofundou como raramente se vê a relação entre a Inteligência Artificial (IA) e o jornalismo profissional, bem como os dilemas e impactos dessa tecnologia no trabalho diário dos jornalistas.
O encontro reuniu alguns dos principais líderes de redação do país, que lidam cotidianamente com o uso das ferramentas, por meio de suas equipes, e nos fluxos de trabalho.
O evento ocorreu na ESPM Tech, em São Paulo, e encerrou a cerimônia em que o Instituto Palavra Aberta recebeu o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa 2025, em reconhecimento à defesa da liberdade de imprensa, e em que 13 jornais centenários associados foram homenageados por sua contribuição à democracia brasileira.
O debate foi mediado por Marta Gleich, diretora-executiva de Jornalismo e Esporte do Grupo RBS, e contou com as participações de Alan Gripp, diretor de Redação de O Globo, Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha de S.Paulo, Eurípedes Alcântara, diretor de Jornalismo do Estadão, e Patricia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta.
Relevância ameaçada
Ao abrir o debate, Marta Gleich apresentou um panorama direto do que observa no dia a dia das redações, com ênfase sobre o tamanho da ruptura em curso. “Hoje, quando a gente busca qualquer informação, o que vem em primeiro lugar é a resposta da IA, e cada vez mais completa, assustadoramente completa, muitas vezes utilizando dados raspados dos sites de jornais, de veículos de muita credibilidade.”
Ela destacou que o fenômeno não é pontual, mas estrutural. As big techs e os modelos generativos, disse, estão reorganizando o ecossistema informacional, deslocando tráfego, audiência e, sobretudo, autoridade editorial.
Segundo ela, a relação histórica entre redações e plataformas atravessa a transformação mais radical desde o início da internet.
Marta explicou que, recentemente, o conselho editorial da RBS identificou 30 usos distintos de IA nas redações, da automatização de tarefas repetitivas à organização de arquivos, passando por sínteses de documentos longos e apoio à apuração.
Mas reforçou que, apesar do ganho de eficiência, há dois pilares que jamais podem ser flexibilizados: “O primeiro é a supervisão humana, sempre. O segundo: transparência total, não enganar o público. Isso está nos nossos valores desde o início.”
A jornalista detalhou o dilema central enfrentado pelos veículos. O conteúdo que financia o jornalismo está cada vez mais protegido por paywalls, mas, ao mesmo tempo, as redações precisam se proteger contra bots que raspam esse conteúdo sem autorização e o utilizam para treinar sistemas que competem com o próprio jornal. “Estamos aqui num terreno difícil para manter a relevância da nossa atividade. Somos uma voz importante para a democracia, mas vivemos o cenário de news avoidance (evitação de notícias), com redes sociais como primeira fonte e IAs que raspam conteúdo. Se estamos nas plataformas, alimentamos o mesmo negócio que nos ameaça.”
Por fim, lançou a pergunta que guiou todo o debate: “Como manter a relevância da nossa atividade diante da mudança no consumo de informação e da IA?”
Educação midiática
Patricia Blanco, que pouco antes recebera, ao lado da equipe do Instituto Palavra Aberta, o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa 2025, trouxe ao debate a perspectiva de quem trabalha diretamente na interface entre liberdade de expressão, educação e cidadania digital. “Esse tema é impactante não só para o jornalismo, mas para toda a sociedade.”
Ela ressaltou que não se trata apenas de compreender como as redações usarão IA, mas de como a sociedade será treinada para consumir conteúdo gerado ou manipulado por IA.
Para isso, defendeu que a ética precisa ser parte central da adoção das ferramentas: “Qual é o limite ético? Até que ponto posso usar essa ferramenta tão interessante sem perder o olhar crítico?”, indagou.
PatrIcia destacou o risco de pasteurização do conteúdo, consequência comum de modelos treinados para gerar respostas médias e previsíveis: “Corre-se o risco de ficar tão preso ao resultado apresentado pela IA que se perde criatividade, análise de contexto, verificação, coisas que só o olhar jornalístico pode trazer.”
Ela também conectou o debate a um problema que cresce no mundo todo, especialmente entre jornalistas mulheres: “A violência inerente à massificação da IA é real. Mulheres já sofrem ataques, manipulações de imagem, assédio, e com deepfakes isso vai aumentar.”
Ao final, reforçou que tecnologia não substitui humanidade: “A IA não substitui sensações. A dimensão humana, a empatia, o julgamento jornalístico são insubstituíveis.”
Regras claras, supervisão humana, legado centenário e a oportunidade de reforçar a credibilidade
Alan Gripp apresentou a visão de uma redação que já estruturou políticas internas formais sobre automação e uso de IA.
Ele descreveu o primeiro contato com modelos generativos como um choque: “O primeiro impacto da Inteligência Artificial foi assustador para nós todos, mas a gente tem, historicamente, no Grupo Globo, um grande otimismo. A gente gosta da tecnologia, vive da tecnologia e se alimenta dela para avançar.”
Gripp explicou que O Globo implementou diretrizes explícitas, com uma cláusula inegociável: “Jamais dispensar a supervisão jornalística. Nunca usar qualquer ferramenta sem supervisão humana.”
Ele destacou que a IA só agrega valor quando conectada ao acervo centenário do jornal, que garante profundidade, contexto histórico e autoridade editorial. “Buscamos conectar a força incrível da IA com o conteúdo que construímos ao longo de 100 anos. Isso evita pasteurização e a morte da criatividade.”
Gripp acrescentou uma leitura estratégica: em cenários de confusão informacional, como na pandemia e agora na era generativa, o público tende a buscar porto seguro em marcas confiáveis. “A pandemia mostrou que somos porto seguro em momentos difíceis. A confusão ampliada pela IA pode, paradoxalmente, reforçar nossa credibilidade.”
Ele defendeu ainda a necessidade de regulação: “É inevitável lidar com regulação. Precisamos estabelecer responsabilidades, punições, limites de uso e transparência.”
Fake news, pirataria, alucinações da IA e a importância do julgamento humano
Sérgio Dávila, diretor da Folha de S.Paulo, definiu a posição do jornal como de entusiasmo crítico, reforçando a necessidade de equilíbrio. “É uma ferramenta incrível que revolucionou processos. Mas há limites.”
Ele explicou que a IA opera olhando para o passado, enquanto o jornalismo trabalha no calor do tempo, capturando eventos até então não registrados: “A IA depende de arquivos consolidados; já o jornalismo precisa captar o que está acontecendo agora.”
Dávila detalhou três riscos que considera centrais. Sobre fake news mais sofisticadas, alertou que o ciclo eleitoral de 2026 será marcado por conteúdo totalmente fabricado por máquinas: “Em 2026 veremos campanhas inventando vídeos e fatos sobre adversários. Caberá aos jornalistas distinguir o que é fato e o que é IA, e isso ficará cada vez mais difícil.”
Sobre pirataria de conteúdo, afirmou que o cenário atual repete o início da internet e das redes sociais: “Toda disrupção tecnológica traz pirataria. O uso do nosso conteúdo sem pagar repete uma história antiga. Precisamos brigar pela remuneração do conteúdo.”
Por fim, abordou as alucinações da IA, um risco direto ao trabalho jornalístico: “Se o repórter se embrenhar cegamente no resultado gerado pela IA, pode publicar alucinações.”
Ele concluiu afirmando que, justamente por isso, o trabalho humano será mais valorizado: “Julgamento é insubstituível pela IA. A opinião qualificada e a análise voltarão a ter muito valor.”
Coragem editorial
Eurípedes Alcântara detalhou o modelo do Estadão, que separa claramente a fase de produção e a fase de entrega: “Uso livre da IA na fase que antecede a entrega do conteúdo; e, entre produção e entrega, leis internas e códigos severos.”
Ele reforçou a regra mais clara do jornal: “No final, o texto terá sempre autoria humana. Você é o autor de qualquer matéria que colocar em qualquer canal do Estadão.” Sobre imagens, foi taxativo: “Não se usa IA para produzir imagens de eventos reais.”
Eurípedes destacou que o valor central do jornalismo, a credibilidade, não pode ser delegado a algoritmos. “Imagina delegar a verificação da verdade à IA. Temos que impor nossas marcas como chancela da verdade.” Ele afirmou que há dimensões que jamais serão substituídas: “O que não será substituído é a coragem editorial. Algoritmos não vão peitar os Poderes quando necessário.”
Fechou sua participação com otimismo: “O jornalismo vive uma crise epistemológica; a IA, se usada com rigor, pode ajudar a torturar as versões até restar o fato. Sou otimista quanto ao uso responsável.”
Prêmio ANJ ao Palavra Aberta
O painel encerrou o evento em que a ANJ homenageou 13 jornais centenários, reconhecendo seu papel fundamental, nacional e regional, na sustentação do jornalismo independente ao longo de mais de um século.
Na mesma cerimônia, o Instituto Palavra Aberta recebeu o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa 2025.
Ao agradecer, Patrícia Blanco reforçou: “Sem educação midiática não haverá audiência crítica; sem audiência crítica não haverá jornalismo de qualidade; sem jornalismo independente a democracia não floresce.”
Judith Brito, superintendente do Grupo Folha e conselheira do instituto, afirmou: “Numa época de polarização, cancelamentos e fake news, esse trabalho é essencial.”
Texto editado com auxílio de IA, produzido e gerenciada por jornalista.
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