I
Conhecer os meandros do famoso “caso Padilla” e as relações putrefatas de um regime que, a principio, encantou e entusiasmou aqueles que lutavam por mais justiça social é a oportunidade que oferece La Buena Memoria – La verdad sobre “El Caso Padilla” (Fort Worth, Texas, Linden Lane Press, 2025), obra da poeta Belkis Cuza Malé (1942), edição e-book em espanhol.
Viúva do poeta Heberto Padilla (1932-2000), Belkis viveu de perto o drama e também sofreu com os constrangimentos pelos quais passou o escritor, vítima de perseguições pelo regime cubano comandado por Fidel Castro (1926-2016). E também foi perseguida e acusada, como o marido, de “contrarrevolucionária”.
Do livro constam não só as memórias de Belkis como vários de seus artigos publicados na imprensa norte-americana e de países hispanoamericanos, além de documentos e fotografias do tempo em que viveram juntos.
Mas, basicamenre, Belkis reconstitui suas lembranças do famoso “caso Padilla”, episódio que se deu em 1971, à época em que Heberto lançara o livro de poemas Provocaciones.
Antes disso, porém, em 1968, o poeta já ganhara o grande prêmio da União Nacional dos Escritores e Artistas de Cuba com o livro Fuera del Juego, no qual insinuara mazelas das autoridades cubanas de então que atuavam com os mesmos métodos arbitrários comuns nas ditaduras de direita.
Apesar das pressões feitas pela direção da União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac), o júri outorgou-lhe o prêmio por unanimidade.
A esse tempo, envolvera-se em polêmicas por defender a criação de um comunismo que valorizasse ideias como as da filosofia existencialista do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), e publicara comentários e partes de seu primeiro romance no suplemento Lunes de Revolución, sendo posteriormente correspondente jornalístico na União Soviética.
II
Com um estilo saboroso e direto, Belkis recorda também os seus primeiros anos, filha de um pai ateu e autoritário, ex-dirigente sindical que logo se alinharia entre aqueles que se mostravam inconformados com os métodos duros da chamada revolução cubana, “um regime fascista mascarado de libertário”.
Pouco afeita ao pai, ela recorda que teve de pedir ao avô, um catalão que emigrara para Cuba no começo do século, para levá-la à cerimônia de entrega do Prêmio Casa de las Américas, em fevereiro de 1962, que obtivera com o livro Tiempos de Sol (poemas).
Foi nessa cerimônia que conheceu Heberto, também um dos galardoados com menção honrosa com o livro de poemas El justo tiempo humano.
O relacionamento entre os dois poetas, porém, só ocorreria a partir de 1967, quando ela já estava divorciada e com uma filha., Maria Josefina.
Heberto também vinha de um primeiro casamento, com Bertha Hernandez, com quem teve três filhos, Giselle, Maria e Carlos. Com Belkis, teve Ernesto. O casamento terminou em divórcio, em 1995.
Em 20 de março de 1971, Heberto seria detido em seu apartamento na calle O, no bairro de El Vedado, com sua mulher, acusados de “atividades subversivas”, depois de lançar em leitura na Universidade de Havana o livro Provocaciones. S
eria solto, em razão de pressões internacionais, 37 dias mais tarde, depois de assinar à força, juntamente com sua mulher, uma “declaração de autocrítica” em que se assumia como “contrarrevolucionário”, pecha que também teve de estender forçosamente à esposa.
A assinatura dar-se-ia numa cerimônia na Uneac, que contou com a presença de cerca de 150 escritores e artistas, membros da instituição.
III
Belkis dedica vários capítulos de sua obra aos dias de detenção de Heberto, lembrando que, só depois de muita insistência, haveria de se encontarr com o marido na prisão num momento em que ele estava debilitado e passando com problemas de saúde, depois que os algozes lhe haviam injetado na veia um líquido que era usado pela polícia política para “facilitar” as confissões dos acusados.
A “declaração de autocrítica” de Padilla, porém, haveria de suscitar, na América Latina, América do Norte e Europa, reações de intelectuais como Mario Vargas Llosa (1936-2025), Julio Cortázar (1914-1984), Gabriel García Márquez (1927-2014), Susan Sontag (1933-2004), Jean-Paul Sartre e outros.
Em função da repercussão negativa para um regime à época ainda com a auréola de reformista, o governo liderado por Fidel Castro haveria de reconsiderar a decisão, procurando dar um fim ao chamado “caso Padilla”.
Como conta Belkis, embora liberto, o poeta, depois de vários anos de tentativas frustradas de deixar o seu país, só teria permissão para sair de Cuba em 13 de março de 1980, quando então mudou-se para os Estados Unidos, por intercessão do senador norte-americano Edward Kennedy (1932-2009).
Um ano antes, Belkis já havia conseguido sair de Cuba, mudando-se para os Estados Unidos com o filho.
Instalada em Princeton, nos Estados Unidos, com Heberto, em 1982, Belkis criou o periódico Linden Lane Magazine, dedicado à literatura e arte, especialmente aquelas produzidas no exílio, e que já alcançou 43 anos de publicação sem interrupções.
No exílio, em 1986, Heberto lançaria o romance En mi jardin pastan los héroes (Barcelona, Editorial Argos Vergara), cujo título, segundo alguns críticos, seria uma referência jocosa e dissimulada a Fidel Castro, a quem muitos cubanos chamavam às escondidas de El Caballo (O Cavalo). O título provém de um poema do poeta salvadorenho Roque Dalton (1935-1975).
IV
Nascido em Puerta de Golpe, Pinar del Río, Heberto formou-se em Direito e Filosofia em Havana. Publicou seu primeiro livro de poemas, Las rosas audaces, em 1948.
Com a vitória da chamada revolução em 1959, foi nomeado correspondente oficial em Nova York, onde já residia à época, depois que fora exilado pela ditadura de Fulgencio Batista (1901-1973), que durou de 1952 a 1959.
Ainda em Nova York trabalhou para a agência Prensa Latina. Com o triunfo da revolução, transladou-se para Cuba, onde continuou a trabalhar na agência Prensa Latina e fez parte da redação do jornal Revolución, dirigido pelo jornalista, poeta e ativista político Carlos Franqui (1921-2010).
É autor também dos livros de poesia La Hora (1964); Cuadernos de Poesía (1964); Poesía y Política (1974); El Hombre junto al Mar (1981); Una Ponte, una Casa de Pedra (1998); Puerta de Golpe, antologia criada por Belkis Cuza Malé (2013); e Una Época para Hablar (2013) antologia que contém toda a sua obra poética.
No gênero narrativas, publicou El Buscavidas (1963), novela; e Prohibido el Gato (1989), romance político, além de La Mala Memoria (Barcelona, Plaza e Janes, 1989), em que conta as vicissitudes que vivera em Cuba.
Heberto Padilla faleceu em 24 de setembro de 2000, depois de uma prolongada doença no coração.
No dia seguinte, foi encontrado morto, sozinho, estendido no sofá em seu apartamento em Auburn, no Alabama. Heberto dava aulas no Departamento de Estudos Latino-americanos da Universidade de Auburn e seus colegas, que já sabiam de seus problemas de saúde, estranharam a sua ausência e foram até a sua residência.
V
Belkis Cuza Malé (1942), poeta, artista plástica e jornalista, nascida em Guantánamo, realizou estudos de literatura cubana e hispano-americana na Universidade de Oriente, em Santiago de Cuba, e na Universidade de Havana.
Ao final de 1964, mudou-se para Havana, onde trabalhou como jornalista cultural e na redação de La Gaceta de Cuba, até a sua saída do país em abril de 1979.
Estreou como poeta com o livro El Viento en la Pared (1962), publicado pelo Departamento de Expansão Cultural da Universidade de Oriente, graças ao seu professor, o poeta, escritor e ator mexicano Eraclio Zepeda (1937-2015).
Começou a trabalhar como jornalista no periódico Hoy em 1965 e, posteriormente, mudou-se para o jornal Granma, do qual, segundo ela, foi demitida em 1967.
Belkis confessaria posteriormente jamais haver tido o menor entusiasmo revolucionário.
Fazia jornalismo cultural e só ia à redação do jornal para entregar os artigos e entrevistas que fazia com personalidades literárias, como o romancista italiano Alberto Moravia (1907-1990), o poeta chileno Nicanor Parra (1914-2018), a escritora argentina-colombiana Marta Traba (1930-1983), o escritor peruano Vargas Llosa, o romancista argentino Julio Cortázar e vários poetas e intelectuais espanhóis que costumavam visitar Cuba, além de pintores e artistas de teatro.
Em 1982, já no exílio, fundou, em Princeton, a revista Linden Lane Magazine, especializada em literatura e arte. Em 1996, radicada em Fort Worth, Texas, fundou La Casa Azul, centro cultural cubano.
Durante mais de 25 anos, escreveu uma coluna semanal de opinião publicada em El Nuevo Herald, de Miami, e outros jornais de Nova York, Los Angeles e Porto Rico. Publicou também artigos no jornal Panorama News, de Fort Worth, que foram reunidos no livro No digas que el día está feo, porque lo has visto (2021).
No gênero poesia, publicou Los Alucinados (1962); Cartas a Ana Frank (1966); Juego de Damas (2002); Woman on the Front Lines (1987); La otra mejilla (2007); e Los poemas de la Mujer de Lot (2011).
No gênero prosa, é autora também de El Clavel y la Rosa: biografia de Juana Borrero (Madrid, 1984); Elvis: La Tumba sin Sosiego o La Verdadera Historia de Jon Burrows (1984); En Busca de Selena, (1997); “Lagarto, Lagarto“, novela, (2013); Ermita, Jazmín y Melaza, (2013); Puerta de Golpe, mi antología personal de Heberto Padilla (2013); e Vida de Tula. Biografía de Gertrudis Gómez de Avellaneda (2016).
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La Buena Memoria – La verdad sobre “El Caso Padilla”, de Belkis Cuza Malé. Fort Worth, Texas/EUA, Linden Lane Press / Colección Testimonio, edição e-book, 399 páginas, 2025. E-mail: lindenlanemag@aol.com
Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-Latas da Madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Robbin Laird, editor, 2024), publicado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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