I
Um resgate da história de violência e dizimação das populações que já viviam no atual território brasileiro à chegada dos invasores portugueses, em 1500, é o que o leitor vai encontrar em Goiás + 300 – Reflexão e Ressignificação – Povos Originários, volume VI, editado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os Povos do Cerrado (Icebe) e Sociedade Goiana de História da Agricultura (SGHA).
Trata-se de obra composta por 25 capítulos escritos por 38 autores, alguns deles indígenas, que contou com a organização das professoras Poliene Bicalho, doutora em História Social pela Universidade do Brasil (UnB), Marlene Ossami de Moura, doutora em Antropologia pela Université Marc Bloch, de Strasbourg, França, e Vanessa Iny-Karajá, pedagoga pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
No texto de apresentação, os organizadores da coleção, Jales Mendonça, doutor em História pela UFG, e Nilson Jaime, doutor em Agronomia pela UFG, avisam que a terminologia povos originários, embora já consagrada pelo uso, não seria bem exata porque se sabe que os povos indígenas do Brasil não tiveram suas origens no território sul-americano, mas a ocupação destas terras deu-se há pelo menos 13 mil anos, o que corresponderia a aproximadamente 650 gerações, enquanto o colonizador europeu estabeleceu-se aqui há apenas 25.
Como observam na introdução as organizadoras do volume, a obra tem por objetivo refletir e analisar a história dos indígenas e não indígenas, reconstituindo a atuação dos primeiros habitantes da atual região de Goiás, assim como o processo de resistência desses povos frente ao projeto colonizador e suas políticas ao longo do tempo.
No texto de abertura, “Territórios indígenas em Goiás”, o geógrafo Rodrigo Martins dos Santos, doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), observa que, a partir da costa do Pacífico, entraram vários grupos que avançaram no continente sul-americano, dando origem a coletividades como a população de Lagoa Santa, em Minas Gerais, onde foi encontrado o crânio de Luzia, fóssil humano mais antigo das Américas, morta entre 11,5 e 11 maAP (mil anos antes do presente). “Os povos Boe-Bororo, Iny-Karajá, Borun-Krenak e Maxakali-Pataxó seriam alguns dos descendentes desses antigos brasileiros do Leste”, diz.
Santos observa que três grandes frentes invadiram terras que eram ocupadas por povos indígenas: a paulista, que fundaria arraiais que viriam a se tornar as atuais cidades de Catalão, Santa Cruz de Goiás e Luziânia, chegando até ao sítio onde seria fundada a antiga capital Vila Boa de Goiás; a baiana, que fundou arraiais que redundariam nas atuais cidades de Monte Alegre, Flores e Formosa, além de cruzar o atual Distrito Federal; e a terceira que já saiu da recém-fundada Vila Boa em terras usurpadas do povo Goyá, rumo ao Norte, pelos limites territoriais do povo Kriká, evitando contato com o território Ãwa-Canoeiro. Segundo o estudioso, nas cinco primeiras décadas dos anos 1700, o território etnolinguístico que mais sofreu com essas invasões foi o dos povos de língua Jê.
II
No capítulo 2, “Povos indígenas em Goiás, ontem e hoje”, assinado por Benedito Antônio Genofre Preazia, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), lê-se dados do Censo de 2022, que constatou a existência de 19.522 pessoas indígenas no Estado, com um aumento de mais de 100% em relação ao censo anterior. Segundo o pesquisador, há hoje um número razoável de indígenas em áreas urbanas, em razão da necessidade que eles têm de buscar trabalho, estudo ou tratamento de saúde.
Já no texto “Aldeamentos indígenas em Goiás (1741-1872)”, Marlene Ossami de Moura, uma das organizadoras da edição, observa que a colonização portuguesa, a pretexto de civilizar os indígenas, procurava atrair para junto dos aldeamentos colonos e escravos africanos que iam se miscigenando, formando uma população mestiça.
Lembra que foi à época do terceiro governador-geral Mem de Sá (1557-1572) que os aldeamentos começaram a se desenvolver.
E que, em todos, já se instalavam instrumentos de punição e castigo, os pelourinhos, para reprimir os rebelados. E, depois, os escravos negros.
A ensaísta cita o botânico, naturalista e viajante francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) que deixou registrado que muitos indígenas foram dizimados por doenças venéreas e até por epidemias de sarampo trazidas pelos invasores portugueses.
Em “Entre guerras e pactos, entre “mansos” e “bravos”, ensaio baseado principalmente em pesquisas em documentos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa, Robert Mori, doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia, de Minas Gerais (UFU-MG), destaca a atuação do sertanista Antônio Pires de Campos (?-1751) para a expansão luso-brasileira no Centro-Oeste, que “seria impossível sem a participação de indígenas” no enfrentamento a outros grupos.
No caso, os Bororo, que o bandeirante tinha como subjugados, a pretexto de administrá-los, enfrentariam os Kayapó do Sul. A intenção do sertanista era de caçar indígenas para depois vendê-los como escravos em São Paulo.
Como diz o ensaísta, os luso-brasileiros dos setecentos consideravam “bravos”, “hostis” e “gentios” os indígenas que os atacavam e “mansos” aqueles que já haviam pactuado com a Coroa portuguesa, aceitando a catequese e serviam aos interesses do monarca, também denominados como “administrados”, como os Bororo e os Paresí, todos capitaneados por Pires de Campos.
Ao considerá-los “administrados”, os luso-brasileiros contornavam obstáculos jurídicos da legislação contrária ao trabalho escravo e aos maus-tratos aos indígenas. Mas, na prática, não é difícil imaginar como tudo funcionava.
III
No ensaio “Das cores das línguas indígenas de Goiás, das línguas em Goiás”, Sinval Martins de Sousa Filho, doutor em Letras e Linguística pela UFG e pós-doutor em Psicolinguística pela UnB, informa que entre 15 e 20 nações habitavam em Goiás no período colonial e as mais conhecidas foram as tribos Goiases, a primeira a ser extinta, Apinagés, Krakô, Caiapós, Xavantes, Acroá, Avá-Canoeiro, Assus, Aniobá, Tapinapés e Araés.
Obviamente, o nome da capitania e, depois, a partir de 1821 da província, deriva daquela etnia também grafada como Guayases, Guayazes, Guoyá e Goiá.
Sousa Filho ressalta que Goiás sempre foi um lugar de concentração de línguas indígenas, lembrando que, ultimamente, Goiânia e outros municípios têm recebido indígenas da nação Warao, provenientes da Venezuela. Segundo dados da Secretaria Municipal de Direitos Humanos de Goiânia, em abril de 2023, existiam entre 120 e 170 Warao vivendo em três bairros da cidade desde 2019.
Já no ensaio “A questão indígena sob a ditadura militar e seus desdobramentos em Goiás”, Carlos Benítez Trinidad, doutor em História da América pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Maria Eduardo Oliveira, graduada em História cursando pós-graduação da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e Poliene Bicalho, uma das organizadoras da obra, lamentam que o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), fundado em 1910, tenha sido assolado pela corrupção, principalmente à época da ditadura militar (1964-1985), tendo participado da pilhagem de terras e da exploração da força de trabalho indígena.
E citam o Relatório Figueiredo (que leva o nome do procurador que realizou a investigação, Jader de Figueiredo Correia) que confirma o esquema de corrupção, genocídio e exploração a que foram submetidos os povos indígenas sob a gestão do SPI, “em favor de colonos, políticos, empresários e elites rurais”.
Os pesquisadores destacam que, durante os chamados “anos de chumbo”, o Estado autoritário permitiu a abertura de terras indígenas a empresas estrangeiras, mineradoras e agroflorestais, “intimamente ligadas ao golpe de 1964”. E acrescentam: “Foram tempos terríveis para os povos indígenas: massacres, expulsões, deslocamentos forçados, exploração em termos de escravidão, deixando-os de tal modo desarticulados que passaram a viver nas periferias das cidades e nas margens das estradas, mendigando ou se prostituindo”.
Investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Congresso Nacional em 2011, indicaram que mais de oito mil indígenas morreram como resultado direto dessa política genocida. Mas, como observam os pesquisadores, a própria CNV admitiu que “esse número está longe da realidade”. Ou seja, pode ser bem superior.
Na impossibilidade de citar os demais ensaios que compõem esta obra, devido ao restrito espaço de uma resenha, é forçoso reconhecer que este livro traz textos de excepcional feitura e rigorosamente pesquisados, o que significa que traçam para o leitor um panorama nem sempre fácil de se encontrar em outras publicações. Sem contar que algumas das fontes permaneciam, praticamente, desconhecidas ou pouco acessadas nos arquivos do Brasil e de Portugal.
IV
O volume VI faz parte de um box de número 2, lançado em outubro de 2023, e que inclui o volume IV, “Cronistas e Viajantes”, com 21 capítulos, e o volume V, “Literatura”, com 23 capítulos.
O lançamento da Coleção Goiás + 300 deu-se a 14 de dezembro de 2022, na sede do IHGG, com a apresentação do box 1, que contem três livros que abrangem os temas História – Geografia – Memória e Patrimônio. Os livros foram disponibilizados para bibliotecas, escolas, faculdades e institutos culturais, além de pesquisadores.
Os organizadores observam que o projeto não tem a pretensão laudatória aos bandeirantes, mas é antes uma correção histórica, “que visa à evidenciação de valores dos povos colonizados, de etnias diversas que habitavam o território do indígena Goiá naqueles dias, muitas delas ainda resilientes em Goiás e Tocantins”.
Até 2026, serão lançados mais quatro boxes: Povos Afrodiaspóricos – Música – Mulheres (box 3); Brasília – Agricultura – Direito e Justiça (box 4); Economia – Direitos Humanos – Goiânia (box 5); e Os primeiros arraiais – Sustentabilidade – Educação (box 6).
As obras estão sujeitas a um Conselho Editorial, formado por 30 doutores e mestres, de diversas instituições culturais e científicas. Sem contar com recursos públicos, a iniciativa tem recebido patrocínio cultural de empresas privadas.
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Goiás +300 – Reflexão e Ressignificação – Povos Originários, volume VI, de Poliene Bicalho, Marlene Ossami de Moura e Vanessa Iny-Karajá (organizadoras). Goiânia, Edições Goiás +300, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os Povos do Cerrado e Sociedade Goiana de História da Agricultura, 548 páginas, 2023. Site: https://ihgg.org E-mail: ihgg@ihgg.org
Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´el-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Lard, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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