I
Um poemário que evoca o tradicional bairro do Campo Grande, em Santos, no Litoral do Estado de São Paulo, é o que o leitor vai encontrar em Poetas bairristas (São Paulo, Editora Primata, 2024), de Ademir Demarchi e Paulo de Toledo, obra premiada pelo 10º Concurso de Apoio a Projetos Culturais Independentes, promovido pela Prefeitura de Santos, por intermédio de sua Secretaria de Cultura – Programa de Apoio Cultural Facult 2022.
Os poemas partem do fato de os poetas serem vizinhos de duas quadras no Campo Grande, assunto explorado com fina ironia e indisfarçável amor ao singelo bairro.
Em seus poemas, os autores descrevem, ao seu modo, moradores, comerciantes, igrejas, negócios, bares e acontecimentos relativos ao lugar, apresentando-os de maneira peculiar e interessante.
Para quem não o conhece, é preciso lembrar que o Campo Grande é um antigo bairro residencial, que fica entre o centro histórico de Santos e a praia do Gonzaga.
Não tem lá muitos atrativos e é mais conhecido por ser vizinho à Vila Belmiro, bairro que, desde 12 de outubro de 1916, abriga o estádio Urbano Caldeira, sede do Santos Futebol Clube, que projetou para o mundo a figura de Edson Arantes do Nascimento (1940-2022), reconhecido como o “rei do futebol” e o “atleta do século”.
É o que lembra Paulo de Toledo no fugaz poema “Vila Belmiro”: no campo / grande não tem / nem a vila. E ainda no poema “Pelé também foi nosso”: sempre deu drible de corpo / no campo / lá da vila belmiro / mas, quando bateu / as chuteiras, o corpo, / em carro / aberto, e aqui ninguém esqueceu, / também fez seu desfile / pelo nosso campo / grande.
Como se lê no texto de apresentação do livro pela editora, os autores tiveram o desafio de explorar em detalhes a alma do lugar para encontrar temas poéticos, o que resultou numa obra na qual o leitor vai descobrir a singularidade do bairro de forma divertida e coisas que talvez nem os moradores tenham algum dia atinado para o fato de que existiam, como se comprova neste poema de Ademir Demarchi, que leva por título “Divisas”: a divisa do bairro é o canal e a linha da máquina / o canal parece que todo mundo atina / da máquina ninguém lembra nem na esquina / a não ser o barbeiro do bairro já velho na quina / quando um moleque aparece e diz meu mestre aê / corta rente marca linha com a máquina para todo mundo vê / lembra, a rffsa foi vendida e sumiu como giz / naquela linha agora somente passa o vlt / parece que estamos na suíça, por um triz / ainda que no ar haja cheiro de linguiça, vê / o churrasqueiro de calçada pilota a brasa aê / queima carne, tosta linguiça e se espreguiça ehhh.
II
Os autores também aproveitam a circunstância de serem poetas e vizinhos para brincar com a linguagem, lembrando o fato de que “vivem na sombra”, “assombrados por não ter leitores”, sujeitos à condição de “viver sem eiras nem beiras” e sendo mais próximos nas prateleiras de livros do que na vida real.
É o que diz em parte o poeta Paulo de Toledo no breve poema “O que diria o bairro”: pior do que ser / assombrado / por dois poetas / desses que vivem na sombra / é não ter / leitor pra tanto assombro.
E Ademir Demarchi acrescenta no poema “Bairro desgraçado”: não bastassem dois poetas vivos / mais magros que vira-latas / agora esse sabiá-laranjeira / do canto enroscado / sem eira nem beira / alternando cos bem-te-vis / de gritos enervados / que o campo pode ser grande / mas seu canto é que é gigante.
De fato, os autores saem de si para encontrar o outro nos moradores do bairro, fazendo versos irônicos como estes do poema “Academia de culturismo”, de Ademir Demarchi: no campo grande não tem academia de letras / mas tem umas cinco de musculação / pra quem não lê não oxidar o cérebro / e poder endurecer o coração. Ou ainda no telegráfico poema “Palestra”, de Paulo de Toledo: nas academias / há muita palestra / defronte aos espelhos.
Irônicos ao extremo, os poetas tripudiam até de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), citando o seu poema sobre “Política literária”, em que os poetas municipal, estadual e federal disputam poder. Sem poder para disputar, definem-se nessa condição autointitulada de “bairristas”.
E aproveitam para ironizar os autores santistas contemporâneos, inclusive este resenhista e pelo menos dois que já se foram para a eternidade, como se pode observar no poema “Ao contrário das más línguas”, de Ademir Demarchi:
ao contrário das más línguas / os escritores santistas são pedestres / o paulo não é de toledo / o manoel herzog não vive num macuco / o adelto gonçalves nunca foi da madrugada / o flávio viegas não mora embaixo de uma amoreira / o edson amâncio não é louco ainda que obcecado / o marcelo ariel não nasceu em cubatão / o demarchi não é santista / a pagu foi embora mas voltou / o plínio marcos levou com ele a cidade.
A ironia vai mais além quando o poeta começa a perscrutar historietas sobre aqueles construtores que, um dia, movimentaram o bairro com seus arroubos empreendedores e financistas, cujos nomes são omitidos, mas que todos os santistas, com certeza, sabem identificá-los, como se vê neste poema intitulado “Piadas de português”, de Ademir Demarchi:
o hipermercado dizia que era extra / mas faliu e parece que não presta / já foi de um português que vendeu para um francês / e a outro português espertalhão faltou esperteza pois morreu / construiu um mundo e um fundo em toda a cidade / e depois um centro de tristes convenções e fealdades / que logo pereceu, também muito certo não deu / quando viu que virou breu, esqueceu do túmulo, sifudeu / a mercedes que ganhou não foi autorizada como esquife / e ele virou cinzas bem perto no crematório do argentino, meu / e bem longe do espanhol, solito que nem a ilha de tenerife.
III
Ademir Demarchi (1960), nascido em Maringá, no Paraná, mas estabelecido em Santos desde 1993, foi editor das revistas de poesia Babel – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, de 2000 a 2017, e Babel Poética, de 2011 a 2013.
Atualmente, é coeditor da revista digital Poetrishy, mantida pela University of Bristol, da Inglaterra. É graduado em Letras na área de Francês pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
É doutor em Letras na mesma área pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP).
Começou sua trajetória poética em 1979, com Ironia e poesia, ainda à época da geração do mimeógrafo. Depois, em 1985, publicaria Maria, a cidade sem rosto, também impressa por mimeógrafo pelo Diretório Central dos Estudantes da UEM, obra que seria reescrita e incluída em Pirão de sereia (Santos, Realejo Livros, 2012), que reúne sua obra poética de 30 anos.
Ganhou o Prêmio Desmadres de Escrita em Portunhol (Argentina), em 2023, com a narrativa El gran circo mundial del tráfico de Barbis.
Seu ultimo livro foi A tênue película que nos separa deste mundo (João Pessoa Ideia Editora, 2024), que obteve o primeiro lugar no Concurso Nacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE), seção da Paraíba, em 2023.
Publicou também Os mortos na sala de jantar (Santos, Realejo Livros, 2007); Passeios na floresta (Porto Alegre, Éblis, 2007; Lima, Amotape Libros, 2013); Do sereno que enche o Ganges (São Paulo, Dulcineia Catadora, 2007; Lima, Centro Peruano de Estudios Culturales, 2012); Ossos de sereia (Assunção, Paraguai, YiYi Jambo, 2010; Santos, Sereia (Ca(n)tadora, 2012; Lima, Viringo Cartonero, 2014); O amor é lindo (São Paulo, Editora Patuá, 2016); Siri na lata (Santos (Realejo Livros, 2015); Gambiarra: uma pinguela para o futuro do pretérito (Bragança Paulista, Urutau, 2018); Espantalhos, ensaios (Florianópolis, Editora Nave, 2017); Contrapoéticas, ensaios, resenhas, prefácios e depoimentos (Florianópolis, Editora Nave, 201); In fuck we trust, poemas (Bragança Paulista, Editora Urutau, 2020); Cemitério da Filosofia – Preceitos da dúvida, poemas (Curitiba, Kotter Editorial, 2020), Louvores gozosos: iluminações profanas com performance de destruição de dispositivos ideológicos, poemas (Ponta Grossa-PR, Olaria Cartonera, 2020) e Antologia impessoal, poemas (Florianópolis, Editora Nave, 2022), entre outros.
Paulo de Toledo (1970) é natural de Santos, onde reside.
É mestre e doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. É autor de Torrão e outros poemas, A rubrica do inventor e 51 medicamentos, poemas.
Publicou também E.E. Cummings (Galileu Edições, 2023), tradução de poemas do poeta norte-americano; Paul Valéry – o Cemitério Marinho (Galileu Edições, 2024), tradução de poema do poeta francês, em parceria com Leo Gonçalves; e Murilo Mendes à italiana (Galileu Edições, 2024), tradução de poemas do poeta brasileiro, em parceria com Denise Durante.
Participou dos livros Musa fugidia, Vaievem e LulaLivre*Lula-Livro.
Publicou poemas, traduções, contos e ensaios em publicações como Revista Babel, Poetrishy, Meteöro, Cult, Revista Ciência & Cultura – SBPC, Coyote, Artéria, Revista Opiniães, Musa Rara, InComunidade, Correio das Artes e Suplemento Cultural de Santa Catarina.
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Poetas bairristas, de Ademir Demarchi e Paulo de Toledo. São Paulo, Editora Primata, 84 páginas, R$ 30,00, 2024. E-mail para contato: editoraprimata@gmail.com
Adelto Gonçalves é jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra e Estados Unidos. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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